450 cestas agroecológicas chegam à mesa de estudantes, migrantes, indígenas e pessoas em situações de rua
Lívia Alcântara
Dentre as muitas consequências da Covid-19, o aumento da vulnerabilidade de alguns grupos é certamente um dos mais graves. Neste contexto, o Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad) resolveu “aproximar quem precisa vender seus produtos com populações em face de vulnerabilidade por causa da pandemia”, explica Herman Oliveira, secretário da entidade. O fórum destinou R$ 45 mil reais para a doação de 450 cestas da agroecologia e da agricultura familiar para estudantes, migrantes, indígenas e pessoas em situação de rua.
“Nossa preocupação hoje é o medo de que o vírus atinja os moradores de rua porque se atingir um, é perigoso que atinja todos. Eles usam em comum os cachimbos, os vasilhames de álcool, os pontos de dormida, o cigarro”, explica Abadia Rosa Miranda, vice-presidente e fundadora da Casa Esperança, em Rondonópolis. A entidade funciona há 21 anos e atende, hoje, 90 pessoas em situação de rua. A instituição sobrevive de subsídio da prefeitura e de doações, mas no cardápio faltam proteínas animais. Leite, carne, queijo, doce, ovos e outros produtos têm chegado até a Casa da Esperança via logística do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST).
A conexão das doações do Formad com as entregas do MST Rondonópolis, surgiu com o sucesso da estrutura que o movimento criou durante a pandemia para que os assentados da reforma agrária comercializassem seus produtos via compras online. O movimento tem recebido de 55 a 70 pedidos semanalmente através do WhatsApp. A organização se encarrega de fazer a solicitação dos produtos para os 60 agricultores dos diversos assentamentos da região, transportar os itens até a cidade e, então, montar as cestas para os consumidores. Aproveitando esta logística, materializou-se a doação do Formad em produtos da reforma agrária para a Casa da Esperança, que já recebeu quatro levas das doações em remessas quinzenais.
César Pina Cassiano, agricultor do Assentamento Egídio Brunetto/MST, município de Juscimeira, tem participado dessa experiência de comercialização. Para ele, a venda sob encomendas traz algumas vantagens: “não temos perda na produção, só colhemos o que realmente foi vendido antes”. Além disso, ele faz questão de frisar que é uma venda de confiança, pois quem consome tem a garantia de um alimento saudável: “nossa produção é extremamente limpa, sem o uso de agrotóxicos ou qualquer produto químico”.
Solange dos Santos, professora e militante do MST, que tem cedido sua casa para a recepção dos alimentos e preparação das cestas, diz está contente com o sucesso das comercializações online e via doações do Formad. No entanto, ela pondera que iniciativas como esta deveriam estar cobertas pelas políticas públicas. No momento, o MST tem assumido toda a logística como forma de salvar as produções dos assentados, que estavam sendo perdidas com os espaços de comercialização reduzidos ou fechados. Mas este é um custo alto, que não pode ser bancado sempre e nem por todos os agricultores.
“Nós temos um histórico de ausência de uma política nacional de incentivo de comercialização da agricultura familiar”, pontua Solange. O MST lançou, recentemente o “Plano Emergencial de Reforma Agrária Popular”, no qual lista médias de proteção e produção com o objetivo de garantir condições de vida digna para a população do campo. E, neste sentido, iniciativas como as das compras e doações dos produtos da reforma agrária em Rondonopólis são um um ótimo exemplo do que poderia ser feito pelo estado.
Cestas agroecológicas de Comodoro à baixada Cuiabana
Exemplo de agricultores que têm enfrentado dificuldades com o fechamento dos espaços de comércio e a suspensão de contratos institucionais de venda de produtos da agricultura familiar, são os vinculados à “Rota de Comercialização Caminhos da Agroecologia”. O projeto é responsável pela comercialização de produtos de Comodoro à baixada Cuiabana, passando por Conquista do Oeste, Pontes Lacerda, Cáceres, Jauru, dentre outros municípios.
Através de uma logística que leva e busca produtos em cada um destes locais, garante-se que alimentos frescos e agroecológicos sejam distribuídos em uma porção significativa de Mato Groso. No entanto, embora as vendas e a logística fossem, antes da pandemia, sustentadas também por expressivas vendas online, o maior montante era originário do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). O programa garante que no mínimo 30% da alimentação escolar venha de produtos da agricultura familiar, mas foi interrompido com a suspensão das aulas e só voltou a funcionar no início de junho, quando os produtos da agricultura familiar foram incluídos nas cestas entregues aos responsáveis dos estudantes.
Desde então, o projeto tem buscado alternativas para dar vazão aos produtos dos agricultores e daí surgiu a parceria com o Formad. Para realizar esta logística de compra dos produtores e organização das cestas, trabalham em conjunto diferentes organizações: o Centro de Tecnologia Alternativa (CTA), a Fase-MT, a Associação dos Apicultores (APA), Associação Regional dos/as Produtores/as Agroecológicos (Arpa), Cooperativa Mista dos Agricultores Familiares de Comodoro (Coopermaf) e Associação Regional das Produtoras Extrativista do Pantanal (Arpep).
A distribuição de cestas já está acontecendo em algumas localidades e será entregue a estudantes, indígenas e migrantes haitianos em junho e julho. Amanda Silva Sousa, estudante de pós graduação em sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), conta que desde o início da pandemia a União Estadual dos Estudantes de Mato Grosso tem buscado apoiar os estudantes de baixa renda que vivem em Cuiabá. Longe de suas famílias, com o restaurante universitário fora de funcionamento e com os “bicos” em bares, restaurantes e lojas suspensos, a sobrevivência tornou-se difícil para estes jovens.
A doação do Formad surgiu então para somar à outras doações captadas pela campanha realizada pela entidade estudantil. Serão atendidos, no total 68 jovens, dentre eles moradores das duas casas dos estudantes existentes em Cuiabá e alunos do cursinho popular “Podemos+”, gestionado pelo Levante Popular da Juventude. Além desses, 30 famílias indígenas e 60 famílias haitianas que vivem na capital mato-grossense também serão contempladas. Receberão cestas agroecológicas, ainda, indígenas das etnias Chiquitano, que vivem perto do município de Porto Espiridião e Nambikwara, que vivem próximos a cidade de Comodoro.
O PAA e a redução dos recursos para a agricultura familiar
As doações do Formad acontecem em um momento onde as políticas públicas de apoio aos agricultores familiares vem sendo minguadas: “neste momento, não há políticas públicas em termos de medidas protetivas para as populações envolvidas nestas doações, seja os grupos dos quais a gente adquire os produtos (agricultura familiar e os projetos de agroecologia), seja para as populações em situações de vulnerabilidade”, explica Herman Oliveira, secretário do Formad.
Agricultores do estado, por exemplo, têm reivindicado à Secretaria do Estado de Agricultura Familiar (SEAF) medidas de apoio em caráter emergencial, como a reabertura da Central de Comercialização da Agricultura Familiar em VG para facilitar as vendas na baixada cuiabana e uma maior abrangência do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do estado de Mato Grosso.
Criado em 2003 com a Lei nº 10.696, o PAA é uma importante forma de incentivar a agricultura familiar, ao mesmo tempo que garante alimentação de qualidade para a população em situação de insegurança alimentar e nutricional. Através do PAA, o governo pode, por exemplo comprar alimento dos agricultores, sem processo de licitação, e doá-los para hospitais, escolas, além de destiná-los a outras demandas existentes em uma situação como a crise do Coronavírus.
No entanto, os recurso para o Programa vem encolhendo ao longo dos anos. O gráfico abaixo mostra a evolução das aplicações em reais no PAA em MT desde a sua criação:
Gráfico: Lívia Alcântara/Formad. Fonte: Dados disponibilizados pela Conab-MT.
Em 2019, ano que ainda não aparece no gráfico, o PAA no estado de Mato Grosso recebeu solicitações de 40 projetos, que somaram R$ 3,5 milhões de reais. No entanto, devido a falta de recursos, apenas 10 puderam ser atendidos, com o desembolso de apenas R$ 507 mil reais, segundo a Francielle Tonietti Capile Guedes, superintendente regional da Conab-MT.
Para amenizar a crise desencadeada pelo Coronavírus, em abril de 2020, o Ministério da Cidadania, por meio da Medida Provisória nº 957, abriu um crédito extraordinário no valor de R$500 milhões. Deste valor, R$220 milhões foram destinados à Conab na modalidade “compra com doação”, ficando o estado de Mato Grosso com 2,53% desse valor. Segundo a servidora pública Francielle Tonietti, este novo recurso está sendo destinado aos 30 projetos não atendidos inicialmente. No entanto, a demanda do estado neste momento de crise é muito maior do que a dos agricultores que solicitaram acesso ao programa no ano de 2020.
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