Relatório técnico analisa vulnerabilidade dos Xavante ao novo coronavírus

Estudo levanta fatores críticos sobre exposição dos indígenas à Covid-19, elenca sucessão de problemas por trás da morte de bebê e faz recomendações para proteger mais vidas

Por Beatriz Ramos/OPAN

No dia 11 de maio, a morte de uma criança Xavante, da Terra Indígena Marãiwatsédé, localizada no município de Alto Boa Vista (MT) teve grande repercussão. O bebê de apenas oito meses foi a vítima mais nova do coronavírus no estado e o primeiro óbito entre indígenas em Mato Grosso, de acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde.

Este caso, além de revelar problemas quanto aos procedimentos adotados desde antes da confirmação da infecção, foi analisado no contexto de uma elevada vulnerabilidade do povo Xavante pela Operação Amazônia Nativa (OPAN), que acaba de publicar um estudo com recomendações ao poder público. O documento tem o objetivo de alertar para a grave situação na atenção à saúde dos Xavante e colaborar na efetivação do direito à saúde indígena diferenciada.

Segundo o relatório, uma sucessão de fatores combinados agrava a exposição do povo Xavante ao novo coronavírus, como a precária estrutura básica de atendimento à saúde, aspectos de sua organização sociocultural, seu perfil epidemiológico e as pressões no entorno de seus territórios.

De acordo com dados do Distrito Sanitário de Saúde Indígena (DSEI) Xavante, apenas 8,5% das aldeias contam com uma Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI). Isso significa que, em boa parte do tempo, cerca de 91,5% dos indígenas ficam descobertos de medidas de vigilância à saúde, o que prejudica a detecção precoce dos casos suspeitos do novo coronavírus. Cada polo base de saúde indígena que atende os Xavante é responsável por 3.572 pessoas, o que representa a maior relação entre os distritos do estado. No DSEI Xingu, que ocupa a segunda posição neste ranking, cada polo atende a 2 mil indivíduos. Com relação à disponibilidade de Casas de Apoio à Saúde Indígena (Casai), a situação é ainda mais dramática: são 10.716 indígenas para cada uma delas no DSEI Xavante, quase cinco vezes mais que o segundo colocado, o DSEI Cuiabá, com 2.167 pessoas por Casai.

Crisanto Rudz Tseremey’wá, presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), critica a falta de articulação entre os poderes e a falta de um plano de enfrentamento da Covid-19 nas terras indígenas. “Não há medidas de proteção, providências da Sesai, que é do Estado brasileiro. Não há cooperação entre os entes federais, com os governos municipais e estaduais para se ter um aparelho respiratório, uma oca de campanha. Não há programa definido para as nossas comunidades, para ter essa proteção. O subsistema de saúde indígena é o básico do básico, deveria se equipar pelo menos durante a pandemia com uma equipe multidisciplinar”, diz Crisanto.

Além de uma alta proporção de indígenas que apresentam comorbidades para Covid-19, como diabetes e hipertensão, a fragilidade do povo Xavante torna-se maior devido ao modo como se organizam as aldeias, com casas muito próximas umas das outras, somada à quantidade elevada de pessoas por habitação, o que pode facilitar a propagação do coronavírus. Os funerais tradicionais também são, conforme aponta o estudo, um aspecto sensível da cultura Xavante no contexto de pandemia, que deve ser levado em consideração na construção de estratégias de conscientização e prevenção ao coronavírus.

De acordo com dados do Comitê Nacional Pela Vida e Memória Indígena, formado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), já foram contabilizados 1.471 casos de infecção e 149 mortes entre indígenas, e 75 povos já foram atingidos pela doença até o dia 28 de maio. Oficialmente, a Sesai considera 1.119 casos confirmados e 45 óbitos até 28 de maio.

O caso da Terra Indígena Marãiwatsédé

Até o dia 29 de maio de 2020, dos quatro casos que testaram positivo para Covid-19 entre indígenas de Mato Grosso, todos são Xavante e três da TI Marãiwatsédé. Eles podem ter relação com o óbito do bebê, que foi entubado na rede especializada sem o conhecimento dos pais e, posteriormente, sepultado na aldeia sem que equipe de saúde indígena ou parentes tenham sido informados sobre a suspeita do coronavírus, confirmada depois do enterro. Na aldeia central, a principal da terra indígena, existe um polo base que atende pelo menos 600 pessoas, sem médico e com equipe desfalcada há quase um ano.

Marãiwatsédé é uma das terras indígenas mais desmatadas da Amazônia Legal, com mais de 70% da vegetação nativa de seu território transformada em pasto e lavoura durante o período em que os Xavante permanecerem fora de sua terra, depois que foram expulsos de lá, em 1966. Esse fato compromete sobremaneira as atividades tradicionais de agricultura, caça, pesca e coleta. Além da dramática situação ambiental, a existência de cruzamento das rodovias BR-158 e MT-424/BR-242 contribui para tornar Marãiwatsédé uma das terras indígenas mais vulneráveis em Mato Grosso. Essas estradas atravessam o território indígena sem nenhum tipo de barreira sanitária, o que expõe ainda mais os indígenas ao contágio.

Sobre este assunto, o estudo reforça que, de acordo com os Informes Técnicos da Sesai, o Brasil ainda não reconheceu claramente que esteja acontecendo transmissão comunitária da Covid-19 nas terras indígenas, ignorando a relação e a influência do entorno nessas populações.

“A transmissão coletiva comunitária é um fato e já está acontecendo, por isso é fundamental que se tenham melhores condições de trabalho, com transporte, equipamentos, remédios e a contratação de pessoas indígenas com condições de monitorar os casos ali dentro. É preciso uma aproximação de trabalho com o conselho de controle social do próprio distrito. Eles têm maiores condições de diálogo com os indígenas e podem auxiliar na proposição de ações conjuntas no trabalho de enfrentamento à Covid-19, chamando a comunidade para compreender os fenômenos que acontecem, as formas de transmissão e os cuidados necessários no dia a dia”, aponta Ivar Busatto, coordenador geral da OPAN.

Recomendações 

Nesse contexto, a OPAN traz uma série de recomendações baseadas nas análises apresentadas na nota técnica. Uma delas é a construção de uma estratégia intercultural de isolamento social junto com as lideranças Xavante, por meio do diálogo, que contemple as concepções indígenas sobre saúde e doença e os procedimentos recomendados pelos serviços de saúde. O documento também recomenda a contratação de Agentes Indígenas de Saúde (AIS) para todas as comunidades das terras indígenas do povo  Xavante, bem como a formação desses profissionais para realizarem a busca ativa dos casos suspeitos de Covid-19 nos territórios, com ampla testagem nas aldeias, sobretudo em Marãiwatsédé.

A instituição recomenda, também, que sejam cumpridas na prática as quarentenas, supridas as necessidades de medicamentos, contratados mais profissionais de saúde e que seja feita uma perícia a fim de verificar a real situação do atendimento à saúde indígena no DSEI Xavante.

Para mais informações acesse o relatório na íntegra.